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Marcelo Abud

Empreendedora e bibliotecária, Ketty Valêncio é proprietária da Africanidades. Com loja virtual e espaço cultural na zona norte de São Paulo, ela define a livraria como uma forma de “promover o resgate e a valorização das identidades negras brasileiras e africanas, por meio dos livros e da cultura”.

Ketty Valêncio na entrada da livraria e espaço cultural Africanidades, mantidos por ela (crédito: Marcelo Abud)

 

Entrevistada neste podcast, Valêncio revela que essa missão tem a ver com a própria história dela na infância e adolescência. “Na escola, não me enxergava nos livros exigidos e, por isso, achava que não era uma leitora, que eu não gostava de ler, porque não me via na literatura, esta que é imposta, clássica.”

A pesquisadora se considera uma ativista. “Com a Africanidades, busco estimular a reflexão e quebrar os preconceitos de uma sociedade que ainda hoje é racista, misógina e classista”, orgulha-se.

A livraria reúne títulos que vão de obras infantis a livros de arte, passando por escritoras fundamentais, como Alice Walker, Angela Davis, Jarid Arraes e Maria Firmino. “O acervo é principalmente formado por autoras negras e feministas. No site, temos títulos que dificilmente são encontrados nas grandes magazines ou livrarias online.”

Valêncio busca livros dificilmente encontrados em outros lugares (crédito: Marcelo Abud)

 

A entrevistada é também uma das idealizadoras do projeto  “Mulheres de Palavra: um retrato de mulheres do rap de SP”. A trilha sonora do podcast foi escolhida por ela própria. “Primeira vez que eu ouvi uma música estilo rap foi algo muito impactante, porque eu via uma narração da minha história. Aí também inicia o ‘lance’ da literatura”, justifica.

Crédito:
As músicas utilizadas de fundo neste episódio foram extraídas do trabalho Hip Hop Instrumentals mix by Bassment FM, disponibilizado sob a licença “Creative Commons”. 

Crédito da imagem principal: Marcelo Abud

Transcrição de áudio

Ketty Valêncio:
Eu achava que eu não era uma leitora, que eu não gostava de ler, porque eu não me via na literatura, esta literatura que é imposta, clássica.

Música: “Rap Girls” (Sharylaine & City Lee)
“Seja como for  / Não tente mudar / Sendo você  / Todos vão gostar”

Ketty Valêncio:
E eu percebo que este descontentamento não é somente meu, é de outras pessoas também.

Música: “Mente Criminosa” (Clara Lima, Tati Botelho, Cris SNJ)
“Rainha do meu mundo / Preta / Gerenciando minha loja / Traficando letra”

Ketty Valêncio:
Primeira vez que eu ouvi uma música estilo rap foi algo muito impactante, porque eu via uma narração da minha história. Também, aí, inicia o lance da literatura.

Vinheta: “Instituto Claro – Cidadania” 

Ketty Valêncio:
Meu nome é Ketty Valêncio. Eu sou bibliotecária e livreira, proprietária da livraria Africanidades, especializada em literatura negra e feminista. A biblioteconomia trabalha com a informação. A informação pode ser em qualquer formato, nós somos os organizadores, os mediadores dessa informação. E por isso que eu comecei a entrar nessa área, nesse caminho, nesse ramo e estou nisso até hoje.

Marcelo Abud:
A missão de Ketty Valêncio é valorizar as identidades negras brasileiras e africanas por meio dos livros e da cultura. Apesar da infância pobre e com pouco acesso à literatura, ela teve uma passagem que a motivou a seguir esse ideal.

Ketty Valêncio:
Uma coisa que me recordo muito bem é que como minha família é uma família de terreiro, a minha mãe lia pra gente livros de mitologia dos orixás. Pra gente ter algo de identificação, porque nesse período eu conheci livros que representassem pessoas negras como protagonistas, como personagens.

Marcelo Abud:
Se as narrativas dos livros exigidos na escola não prendiam Ketty, além da mitologia dos orixás, uma escritora gera grande identificação e mostra a ela o poder da literatura.

Ketty Valêncio:
Acho que um dos primeiros livros que eu li chama “Por que não dancei?”, que é da Esmeralda Ortiz, que é uma autora negra, que durante bastante tempo ela estava vulnerável, ela estava em situação de rua e ela conta, é uma autobiografia esse livro e ela passou em locais que eu já tinha passado. Ela morou em locais que eu tinha morado, aí eu consigo me ver na história e eu consigo perceber que isso faz muita falta na vida de pessoas como eu: adolescente, na época, mulher, negra e como a gente não tinha acesso a esse tipo de informação. E, daí, eu via que também o acervo era um acervo branco, que eu não tava lá nos livros, eu não tava na prateleira e também eu via que também os locais onde eu frequentava, eles não queriam minha presença lá. Eu era uma presença temida, uma presença não bem-vinda, não só eu como pessoas parecidas comigo.

Música: “Anônima” (Tamara Franklin)
“Pedra branca pra quem não conhece, respeito mantenho / Quer saber quem eu sou? é só saber da onde eu venho!”

Ketty Valêncio:
Eu acho que quando a criança olha, através das ilustrações, personagens que são muito parecidos com ela, através do cabelo, através da pigmentação da pele dela, a parte do território, às vezes, que está tratada a questão da periferia, está ali ilustrado casas parecidas com a dela. E a história, também. Eu acho que talvez ela vai conseguir mais fácil se ver dentro do livro, porque a sociedade predestina para nós, pessoas negras, ser qualquer outra coisa menos um formador. Uma pessoa que tenha como atuação como cidadão e cidadã. Aliás, a ideia é de que a gente possa fazer aquilo que nós quisermos, né?

Marcelo Abud:
Foi justamente pensando em apresentar a literatura para crianças e adolescentes que, antes de se tornar uma livreira, Ketty Valêncio atuou em bibliotecas escolares.

Ketty Valêncio:
Quando entro para trabalhar na escola, eu vejo que eu tenho um papel mais eficaz nessa área. Eu consigo construir um acervo que resgate esse protagonismo através da literatura, principalmente porque eu tô próxima de adolescentes, de adolescentes periféricos e eu preciso fazer conexões com eles. Consigo tentar conquistar esses usuários para serem usuários potentes e ter uma continuidade com eles.

Música: “Fique Viva” (Brisa Flow)
“Baby é só mais uma armadilha / Cuidado na trilha / Baby / Fique viva, fique viva”

Ketty Valêncio:
Quando eu entro na biblioteca escolar vem à tona a Lei 10.139 com mais atuação na rede. Então, eu começo a receber materiais que têm a ver com essa leitura de autoria negra, protagonismo negro e as pessoas também estão procurando. Eu consigo ter também uma atuação com os docentes pra trabalhar essa área na sala de aula e mais os alunos. E daí eu começo já a querer focar mais nesse caminho mesmo.

Marcelo Abud:
Outras “africanidades” inspiram a pesquisadora rumo a livros e culturas negras.

Ketty Venâncio:
Eu pego inspirações do passado, como o pessoal do Quilombhoje, tem o Quicabo, tem outras pessoas fora do estado de São Paulo também que fazem um trabalho brilhante de resgatar a literatura negra. Porque a literatura negra não é uma coisa contemporânea. Tem pessoas negras que escrevem há muitos anos, há outros séculos e a gente está tentando resgatar essas memórias através de quebra-cabeças, esses fragmentos. Hoje em dia, a gente tem esse potencial a mais por conta das redes sociais, por causa da internet. A parte de pesquisa, os arquivos, tem muita coisa que foi disponibilizada na internet e isso é mais fácil de conseguir, mas no passado já teve vários trabalhos e tem ainda, que eles ainda continuam atuantes. E outras pessoas também com projetos parecidos com o meu, com projetos também que não têm nada a ver com literatura, mas projetos de protagonizar essa autoria negra em diversas esferas, não só na literatura, como artes visuais, no audiovisual, no social também. Então, eu acho que eu me inspiro sempre, várias pessoas me inspiram.

Música: “Áurea Semiseria” – Áurea Abolicionista
“Os que tão do lado eu sei / Os que tão do lado”

Ketty Valêncio
A Africanidades nasceu em dezembro de 2013, tem a ver com a minha história também, toda a minha angústia, minhas inquietações na infância, na adolescência, essa falta, essa ausência de literatura, dessa literatura que não me via, que não me enxergava, as frustrações disso também, da unidade escolar, da profissão também, da academia também, de algum modo. E, depois, eu consigo resgatar a história de pessoas que fizeram essa atuação e eu começo a encarar como algo de empreendedorismo mesmo, que há possibilidade de eu montar algo e que tem mercado, as pessoas querem saber mais sobre elas, mesmo pessoas não negras, mas que querem saber o outro lado da história e não tem acesso.

E eu acabo sendo esse instrumento, que eu falo que eu sou “uma grande baluarte de memórias negras”, então eu estou aqui de passagem e eu sou a ponte, eu sou o acesso. A livraria fica nesse papel, de ser esse acesso. Eu não posso ser maior do que a livraria, a livraria tem que ser maior do que eu porque essa é a minha missão.

Marcelo Abud:
Valêncio também é uma das idealizadoras do projeto “Mulheres de Palavra: um retrato de mulheres do rap de São Paulo”.

Ketty Valêncio:
O rap é uma disputa de narrativa. É uma narrativa cotidiana, é uma narrativa ligada à margem, é uma descrição do seu cotidiano. E aí eu percebo que ele está falando sobre algo que eu já passei ou pessoas que eu conheço que já passaram. E daí começa assim, eu começo a descobrir que era Malcolm X, quem foi Martin Luther King, quem foi Angela Davis, enfim, todos esses baluartes da cultura negra e começo a fazer o meu trabalho de pesquisa, saber quem são essas pessoas pra me aprofundar um pouco mais nessas teorias. E também tem o lance de você questionar o seu local, o seu lugar como cidadã e cidadãos, acho que isso tem a ver. Não é somente uma militância fabricada – você não precisa fazer parte de um partido coletivo –, mas é o cotidiano mesmo, a gente faz militância no shopping, na rua, em casa também. Porque é importante a gente fazer isso de dentro pra fora e não de fora pra dentro.

Música: “Odisseia das flores”
“Pode acreditar é real / Diretamente dos morros escuros de Franco da Rocha / É das vielas sombrias do Brás que a gente faz / Somos a minoria clã anti-patifarias / Nossas opiniões trovões que mudam o clima / Causa reflexões, peso na consciência / Causa discussões para aqueles que não pensam / Entram em choque”

Marcelo Abud:
Na Africanidades, um quadro provoca os que passam pela livraria com a seguinte pergunta: quantas autoras negras você já leu? É mais uma ação de Ketty Valêncio para estimular a reflexão e quebrar os preconceitos de uma sociedade que ela considera, ainda hoje, racista, misógina e classista.

Com seu ativismo, a bibliotecária busca resgatar e valorizar identidades que estimulem outras mulheres negras e feministas a protagonizarem suas próprias histórias.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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