Duas notícias interessantes foram publicadas quase no mesmo dia. A primeira foi a aprovação, pela Câmara do município de Cubatão (SP), de um programa de educação midiática. A segunda foi a inclusão do álbum “Sobrevivendo no Inferno” (1997), do grupo nacional de rap Racionais MC’s, entre as “leituras” obrigatórias do vestibular 2020 da Unicamp.

As duas notícias podem parecer, à primeira vista, sem relação; no entanto, possuem um vínculo. Trata-se da ideia que a educação midiática não precisa se voltar apenas a prevenir ou evitar possíveis danos provocados pela relação entre crianças e jovens com a mídia (dimensão que parece central na proposta de Cubatão). A educação midiática possui também, como a lua, outro lado geralmente oculto: pode ajudar no conhecimento e fruição dos produtos midiáticos que, sob diferentes critérios, possam ser considerados excelentes.

Acho que esse é o caso do trabalho dos Racionais. Mas quantos outros discos de artistas populares, programas de televisão, rádio e filmes cinematográficos de alta qualidade também poderiam ser apropriados em práticas pedagógicas? Certamente muitos e é só o nosso preconceito e desconhecimento, aliados às nossas justas preocupações com os possíveis malefícios dos meios de comunicação, que fazem com que nos concentremos basicamente na dimensão negativa da experiência midiática.

Tenho ficado surpreso ao descobrir, quando me proponho a exibir um filme de Charlie Chaplin para alunos universitários, que a maioria nunca assistiu a um filme desse criador. Exibo geralmente com algum objetivo pedagógico – por exemplo, a discussão da revolução industrial que “Tempos Modernos” (1936) pode sugerir. No entanto, o simples prazer da mímica, da graça, do humor de Carlitos que alguma obra de Chaplin pode propiciar parece uma boa justificativa, no sentido de ampliar a cultura e a sensibilidade juvenil.

É claro, nesse desencontro entre a educação formal e a fruição do “melhor” que a mídia já fez há uma parcela considerável de responsabilidade dos pesquisadores, pois temos feito pouco para valorizar os produtos dessa “cultura profana” da mídia. Mais que isso, pouco temos escrito e pensado sobre as ações que possam ajudar a desenvolver curricularmente esse aspecto na educação midiática e nas práticas pedagógicas de maneira mais geral.

Há exceções, aqui e ali, como a reflexão de Arlindo Machado sobre produtos significativos da televisão (no livro “A televisão levada a sério”, de 2000), no entanto, hoje contamos mais com a criatividade dos próprios professores. Por sinal, adoraria conhecer experiências didáticas dos que já utilizam o álbum dos Racionais. Como eles tentam dar mais sentido à fruição do rap ou outro produto midiático interessante, desenvolvendo, afinal, uma das tarefas mais nobres da educação: ampliar o horizonte cultural das crianças e jovens.

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Fiquei um pouco decepcionado, ao retornar à notícia sobre o ingresso da obra dos Racionais no rol de leituras do vestibular da Unicamp e ver alguns comentários muito preconceituosos e ressentidos. Triste sinal dos tempos.

O Instituto Claro abre espaço para seus colunistas expressarem livremente suas opiniões. O conteúdo de seus artigos não necessariamente reflete o posicionamento do Instituto Claro sobre os assuntos tratados.

Autor Richard Romancini

Richard é doutor em Comunicação, pesquisador e professor do curso de pós-graduação lato-sensu em Educomunicação da ECA-USP.

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