No início de maio de 2012, foi festejada entre cineastas e entidades do cinema brasileiro a aprovação da obrigatoriedade de exibição de filmes de produção nacional nas escolas de educação básica, por unanimidade, pela Comissão de Educação e Cultura da Câmara dos Deputados. A decisão será levada à Comissão de Constituição de Justiça e Cidadania (CCJC) e, caso não sofra alterações, será encaminhada para aprovação da presidente Dilma Rousseff, que já se mostrou favorável. Em seu site, o senador Cristovam Buarque, autor do Projeto de Lei nº 7507, de 2010, justifica a iniciativa alegando que “os jovens que não têm acesso a obras cinematográficas ficam privados de um dos objetivos fundamentais da educação: o desenvolvimento do senso crítico”. O texto especifica que devem ser exibidas, no mínimo, duas horas mensais de filmes nacionais (longa metragem), nas escolas de Ensino Fundamental e Médio.

A proposta tem grandes chances de ser aprovada, pois se articula com vários outros documentos das políticas educacionais que visam valorizar a arte brasileira como parte da formação humanista e cidadã dos nossos estudantes. Sua aprovação pode ser uma boa notícia para a educação e cultura brasileiras, mas pode também ser mais uma lei “que não pega” ou que pode ser deturpada. De que forma?

A obrigatoriedade da exibição de filmes brasileiros pode adquirir um caráter negativo se forem impostas obras sem a mediação necessária. Alguns filmes considerados clássicos da história do cinema brasileiro são importantes para a formação de um repertório cultural, porém, dependendo das opções estéticas, podem ser muito densas para as crianças ou jovens. É preciso uma mediação para que o filme faça sentido para eles, caso contrário pode provocar um bloqueio pedagógico. E como construir essa mediação?

Várias pesquisas têm apontado que os próprios professores conhecem pouco da nossa cinematografia. Uma vez que a cultura audiovisual não faz parte da sua formação inicial, o professor aprecia os mesmos filmes que a maioria da população, isto é, tem preferência pela cinematografia hollywoodiana e são envolvidos pela forte publicidade que a acompanha. Essa predileção não seria um problema se não estivesse revestida também de preconceito com relação aos filmes nacionais e pouquíssimo contato com filmes de outros países, além dos EUA. É preciso problematizar a hegemonia do cinema norte-americano e a escola tem um papel importante nisso.

O cinema, desde seu surgimento, se configurou como uma linguagem artística cuja produção é muito cara. Diferentemente do teatro, da literatura ou das artes plásticas, o cinema tem uma relação muito mais dependente de financiamentos e das leis de mercado. Os EUA, pela sua própria história econômica, desenvolveu uma indústria cinematográfica poderosa que, embora independente economicamente, se fez como política de estado. O cinema das superproduções hollywoodianas fez parte da dominação política, econômica e cultural dos EUA em relação ao resto do mundo, desde o final da primeira guerra mundial. O cinema é a segunda indústria mais importante dos EUA, perdendo apenas para a armamentista.

Podemos notar, nas locadoras de filmes, o quanto o cinema é praticamente sinônimo de cinema norte-americano. Nas prateleiras de DVDs encontramos rótulos por gêneros, como comédia, suspense, terror, romance, etc. Depois há uma prateleira com a indicação cinema nacional ou cinema brasileiro e outra prateleira denominada  cinema estrangeiro. Nas locadoras maiores, podemos encontrar, ainda, as subdivisões  cinema europeu, cinema asiático… Mas o cinema norte-americano dispensa sobrenome. Ele é “o” cinema. Contra essa hegemonia, outros países com relevante produção cinematográfica – como França, Itália e Espanha, têm fortes leis protecionistas, isto é, o estado garante uma reserva de mercado e verbas para que a sua própria cinematografia consiga sobreviver a esse bombardeio mercadológico. 

Assim como a grande indústria cinematográfica norte-americana é hegemônica nas salas de cinema e locadoras, na televisão aberta temos a predominância das telenovelas, especialmente as produzidas pela TV Globo. Muito bem produzidas, as telenovelas passaram a fazer parte do cotidiano da maioria das famílias, de todos os segmentos sociais. Embora também apresentem crítica social e humor, o melodrama e o romance são os eixos fundamentais da telenovela. Há quase 50 anos, a ficção televisiva diária acostumou o público brasileiro a uma determinada estética e agilidade nas narrativas.

Desde 2000 que a Globo passou a atuar também no mercado cinematográfico, produzindo e atuando fortemente na etapa de distribuição dos filmes (lacuna não preenchida pelas leis de incentivo à cultura). Muitos diretores bem sucedidos na TV aberta, como Guel Arraes e Daniel Filho, passaram a dirigir filmes, alguns bastante originais, como Auto da Compadecida (2000), realizado simultaneamente para TV e cinema. Outros filmes insistiram em repetir fórmulas e sucessos da TV, sem grandes experimentações e, obviamente, se valendo de atores que também são populares nas novelas. Com os preços altos dos ingressos de cinema, as pessoas preferem apostar nos modelos já conhecidos e que se apoiam em farta publicidade. O que se percebe é que as produções hollywoodianas e os filmes nacionais semelhantes às telenovelas são hoje os que garantem público nas salas de cinema. Muitos outros ótimos filmes produzidos no Brasil ficam em cartaz num circuito restrito e, às vezes, por pouquíssimo tempo. 

Além do preconceito, construído nos anos 1970/80, de que “cinema brasileiro só tem pornografia”, muitos professores, pela invisibilidade de outros filmes, acreditam que atualmente só existam filmes sobre a violência urbana, em função do sucesso de filmes como Cidade de Deus (2002) e Tropa de Elite (2007 e 2010) ou as comédias recentes, com a estética da ficção televisiva.

É importante que a escola, sem precisar combater o cinema comercial, possa apresentar aos alunos outras linguagens, outras culturas, outros temas e gêneros, além daqueles que os alunos estão acostumados. Para isso é importante que os professores que assistem pouco aos filmes brasileiros buscassem conhecê-los na sua diversidade. Esse paradoxo vivido hoje pelo cinema brasileiro – de produzir sem conseguir exibir – precisa ser compreendido por educadores que queiram levar os filmes nacionais para as escolas.

 

 

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Autor Cláudia Mogadouro

Cláudia é doutora em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes da USP. Graduada em História, especialista em Gestão de Processos Comunicacionais, mestre em Ciências da Comunicação pela ECA-USP e pesquisadora do Núcleo de Comunicação e Educação da USP.

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