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A Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) fez uma seleção de 20 sonetos daquele que é considerado um dos maiores poetas da literatura universal, Luís Vaz de Camões, como parte de suas indicações de leitura obrigatória.

Para analisar esse conteúdo, o Instituto Claro conversa com o professor de literatura do Cursinho da Poli, de São Paulo, Frederico Barbosa. “Na seleção feita pela Unicamp, o amor é o tema central. Neste sentido, alguns sonetos trabalham o neoplatonismo, em que o ideal é visto como mais interessante do que o real”, destaca.

Retrato de Camões pintado por Fernão Gomes no século XVI

 

Para o especialista, os sonetos de Camões são, em grande parte, maneiristas. “É um estilo entre o Classicismo e o Barroco, em que ainda se trabalha com a forma (…) mas já inclui uma certa melancolia, que não era comum aos poetas clássicos.”

Influenciado pela estrutura criada pelo poeta italiano Francesco Petrarca, a escrita do autor português segue uma estrutura dialética, oriunda do pensamento grego. Para isso, há adoção da fórmula petrarquina, que se divide em “tese, antítese e síntese”, respeitando originalmente uma divisão entre quatro, quatro, seis estrofes.

“Na língua portuguesa, virou quatro, quatro, três, três [estrofes], mas, se você olhar o esquema de rimas, vai perceber que os quartetos têm uma rima e os tercetos têm outra rima, que só se completa quando você lê os dois tercetos”, explica o entrevistado.

Ainda no podcast, Barbosa utiliza alguns dos sonetos para analisar o uso recorrente de paradoxos e oximoros. “Em ‘amor é fogo que arde sem se ver’, o paradoxo é você falar em uma ‘ferida que dói e não se sente’; e o oximoro é ‘dor sem doer’. Além disso, aqui também você tem tese, antítese e síntese”, ressalta ele, na análise que segue no áudio.

Segundo ele, a presença dos versos desse soneto na música “Monte Castelo”, da banda Legião Urbana, comprova o que se vê também nos outros 19 textos reunidos na coletânea proposta pela Unicamp: a poesia lírica de Camões, apesar de distante no tempo, permanece atual para quem se dispõe a enveredar por ela.

Link:
Seleção dos Sonetos de Camões indicados para o vestibular da Unicamp e exercícios por Frederico Barbosa

Transcrição do áudio:

Frederico Barbosa:
“Amor é fogo que arde sem se ver / É ferida que dói, e não se sente / É um contentamento descontente / É dor que desatina sem doer. / É um não querer mais que bem querer / É um andar solitário entre a gente / É nunca contentar-se de contente; É cuidar que se ganha em se perder”

Música: “Língua” (Caetano Veloso)
“Gosto de sentir a minha língua roçar a língua de Luís de Camões /  Gosto de ser e de estar /  E quero me dedicar a criar confusões de prosódias /  E uma profusão de paródias /  Que encurtem dores /  E furtem cores como camaleões”

Som de página de livro sendo virada

Vinheta: “Livro Aberto, obras e autores que fazem história”

Som de página de livro sendo virada

Música “Valsa Portuguesa” (Belo Marques) – Orquestra Típica Portuguesa permanece de fundo

Marcelo Abud:
As páginas deste Livro Aberto são dedicadas aos sonetos de Luís de Camões. Para analisar a inovadora maneira de se expressar na poesia em língua portuguesa, o Instituto Claro conversa com o professor de literatura do Cursinho da Poli, Frederico Barbosa.

Frederico Barbosa:
Há muitos estudiosos – e eu acho que estão corretos – que consideram os sonetos de Camões ou a maior parte deles como maneiristas. É um estilo que se coloca entre o Classicismo e o Barroco, ou seja, um estilo em que ainda se trabalha com a forma, digamos, bastante perfeita, formalizada, sem tanto desespero quanto à arte barroca, mas que já inclui, no caso dos sonetos de Camões, uma certa melancolia, bastante paradoxo, antíteses que são características do coração humano. Então, nesse sentido a gente pode dizer que os sonetos de Camões tendem a ser – a grande parte deles – sonetos maneiristas e não sonetos clássicos propriamente ditos.

Marcelo Abud:
A grande influência da lírica camoniana é a poesia do italiano Francesco Petrarca.

Frederico Barbosa:
O Petrarca viveu no século XIV, no trechento italiano, de 1304 a 1374. E foi o Petrarca que desenvolveu a arte do soneto. Ele dizia que o soneto tinha uma estrutura dialética, correspondendo à estrutura dialética do pensamento criado pelos gregos, ou seja, o soneto deveria ter tese, antítese e síntese. E, por isso, ele dividiu o soneto em quatro, quatro e, originalmente, seis, que, na língua portuguesa, virou quatro, quatro, três, três. Mas se você olhar o esquema de rimas, você vai perceber que os quartetos têm uma rima e os tercetos têm outra rima, que só se completa quando você lê os dois tercetos. Então, basicamente, o soneto camoniano, assim como o petrarquiano, é quatro, quatro, seis. E o que é que seria essa síntese? Seria uma terceira realidade, não é ‘ficar em cima do muro’, mas você construir uma terceira realidade a partir da tese e da antítese.

Som de página de livro sendo virada

Frederico Barbosa:
O soneto do Petrarca diz o seguinte: “A alma minha gentil que agora parte / Tão cedo deste mundo à outra vida / Terá certo no céu grata acolhida / Indo habitar sua mais beata parte”. Esse soneto foi traduzido pelo Jamil Almansur Haddad. Reparem que ele está falando da musa, no caso do Petrarca, a Laura, que morreu e que vai habitar a mais beata parte do céu. Então, ela morre cedo, quando ele diz “tão cedo deste mundo à outra vida” e vai habitar a mais beata parte do céu. Já o Camões transforma essa primeira estrofe no seguinte:

Música: Alma minha gentil (poema de Camões), voz de Marina Pacheco e piano de Joana David, com arranjo de João Arroyo
“Alma minha gentil, que te partiste /  Tão cedo desta vida descontente, /  Repousa lá no céu eternamente, /   E viva eu cá na terra sempre triste”

Frederico Barbosa:
Reparem que ele acrescenta, aos versos do Petrarca, a palavra “descontente”, o termo “sempre triste”. Isso não está nos versos do Petrarca, que é um poeta absolutamente clássico. O Camões introduz esse descontentamento com a morte; esse estar sempre triste na Terra; esse afastamento dele da mulher amada, que também não está no soneto do Petrarca – o que é uma marca do maneirismo, ou seja, ele não é mais clássico, mas já introduz essas questões – a melancolia, a tristeza – e a divisão, a antítese, no soneto. Então, na primeira estrofe do soneto do Camões, ele apresenta essa distância, o lá e o cá: o lá é onde está a mulher amada; e o cá é onde está o amador e eles estão eternamente separados. Ela está no céu eternamente e ele está na terra sempre triste.

Som de página de livro sendo virada

Frederico Barbosa:
Na segunda estrofe, reparem que vai acontecer uma antítese, alguma coisa que vai aproximar os amantes:

“Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro vistes.”

Frederico Barbosa:
A memória junta os amantes. Se ela tem possibilidade de se lembrar dele, ela vai se recordar, assim como ele se recorda dela. Então, a tese é “estão sempre separados”, a antítese é “a memória os une”. Qual vai ser a síntese?

“E se vires que pode merecer-te
Alguma coisa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou”.

Frederico Barbosa:
Ou seja, a síntese é “a morte pode aproximar os amantes de novo”. Ele pede a ela que rogue a Deus que o leve também. Alguém pode perguntar “por que ele não se mata?”. Oh, porque se ele se matar ele vai para o inferno, segundo os católicos. Acho que é importante esse soneto pra gente demostrar essa questão antitética e pra demonstrar o maneirismo do Camões.

Música: Ah! Minha Dinamene! – poema de Luís Vaz de Camões musicado por Jorge Salgueiro, com Coro Setúbal
“(…) já não posso ver-te, / Tão asinha esta vida desprezaste!”

Frederico Barbosa:
Essa fórmula da tese, antítese, síntese é bem comum até no grande soneto, no soneto que as pessoas conhecem e que, normalmente, não percebem a antítese, mas é muito interessante a gente mostrar, que é o soneto “Amor é fogo que arde sem se ver”.

Música: Monte Castelo (Renato Russo), com Legião Urbana
“É um não querer mais que bem querer / É solitário andar por entre a gente / É um não contentar-se de contente / É cuidar que se ganha em se perder”

Frederico Barbosa:
Esse é um soneto em que ele mostra, claramente, as contradições do amor, o caráter dialético do amor, usando uma série de antíteses, paradoxos, oximoros. O que é uma antítese? É quando ele fala, por exemplo, “amor é fogo que arde sem se ver”. Qual é o paradoxo? É você falar que é uma “ferida que dói e não se sente” ao mesmo tempo, isso é um paradoxo. E o oximoro é dor sem doer, não é? Como é que pode uma dor não doer? É um absurdo caracterizado como oximoro. Além disso, você tem tese, antítese e síntese, como, na primeira estrofe, o amor é fogo, é ferida, é contentamento, é dor. O amor são substantivos que começam concretos – fogo, ferida – e depois se tornam substantivos abstratos – contentamento, dor.

Na segunda estrofe, todos os versos da segunda estrofe trazem o amor como verbos, não são mais coisas, nem sentimentos, são ações: é um não querer, é andar, é contentar, é cuidar. São sempre verbos. Então, se estabelece a tese, a antítese aí, pra chegar à conclusão de que ele não consegue definir o amor, que ele  não consegue usar a razão para definir a emoção e chega à conclusão de que o amor é tão contraditório que a gente não pode nem gostar do amor. Por que que a gente gosta do amor se é algo tão contraditório?

Música: Monte Castelo (Renato Russo), com Legião Urbana
“É um estar-se preso por vontade / É servir a quem vence, o vencedor / É um ter com quem nos mata a lealdade / Tão contrário a si é o mesmo amor”

Frederico Barbosa:
Curiosamente, o Renato Russo, quando fez a canção “Monte Castelo”, ele gravou isso para mandar para uma pessoa pela qual ele estava apaixonado na Itália. E, ao fazer isso, ele corta essa última estrofe: “Mas como causar pode seu favor nos corações humanos amizade, /se tão contrário a si é o mesmo amor”. Por que? Porque se você vai mandar esse poema para uma namorada ou namorado é melhor você cortar, porque ele está dizendo “como é que a gente pode gostar do amor?”. O seu namorado ou a sua namorada pode pegar isso, ler e falar “realmente eu não posso gostar do amor. Se manca, meu caro, vou embora”.

Música “Valsa Portuguesa” (Belo Marques) – Orquestra Típica Portuguesa permanece de fundo

Marcelo Abud:
No blog do professor, você encontra todos os 20 sonetos selecionados como leitura obrigatória do vestibular da Unicamp, além de comentários e algumas questões que caíram em exames anteriores. O link para acessar esse conteúdo está no texto que acompanha este áudio.

O convite é para que você leia e entenda porque Camões revolucionou a poesia em língua portuguesa.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Livro Aberto do Instituto Claro.

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