Em 9 de janeiro de 2020, comemora-se o centenário do poeta João Cabral de Melo Neto. Falecido em 1999, o autor da terceira geração do modernismo brasileiro ficou conhecido como “poeta engenheiro” por dispensar a inspiração em prol de um trabalho árduo sobre as palavras e estrutura de seus poemas. Além disso, transformou a geografia e problemas sociais do Nordeste em poesia.

Para trazer a obra do escritor para a sala de aula, o docente de literatura da Universidade Federal de Pernambuco (UFPE), Anco Márcio Tenório Viera, sugere que o professor escolha temas presentes em sua obra, como o rio Capibaribe e as comunidades.

“É possível pensar, com os alunos, como o poeta seleciona um objeto e dá um novo sentido a ele, transformando-o em linguagem. Um olhar da poesia que será diferente do da sociologia, por exemplo”, explica.

Quais as características da obra de João Cabral de Melo Neto?

Anco Márcio Tenório Viera: Ele acusava a poesia portuguesa de ser excessivamente retórica e discursiva. Então, fez uma poesia mais substantiva e menos subjetiva, ou seja, tratava sobre as coisas do cotidiano. Por meio de substantivos, criava imagens concretas e objetivas. Além disso, se lermos os poetas modernistas em ordem cronológica, ao chegar em Cabral, haverá uma estranheza. Parece uma coisa seca, desidratada, como um galho em que as folhas caíram e só restou o que era essencial.

Quais os principais temas que ele abordou?

Viera: Nordeste e a região de Andaluzia, na Espanha, onde morou. O Nordeste representado pela miséria, pela fome, seca, o agreste e também o rio Capibaribe. São temas, por um lado, socias. Já na Espanha, escreveu sobre costumes, como as touradas e a dança flamenca.

Por que ele era denominado “poeta-engenheiro?”

Viera: Ele fazia uma poética calcada na transpiração e não na inspiração. Ou seja, não é uma ideia de poesia que vem pronta na cabeça. Ele pensava o tema e buscava as palavras para moldá-lo. Mesmo que ficasse anos trabalhando no mesmo poema, até considerar que ele estava pronto. É uma poesia antilírica.

Pode-se dizer que ele constrói o poema como se fosse um engenheiro, profissional que reflete como será a estrutura e pensa seu próprio material. Cabral era igual: pensava seu material. Tanto que quase 40% da sua obra é metapoesia, ou seja, ele falando sobre como fazer poemas e os procedimentos. Para ele, todo poeta deveria refletir sobre a linguagem.

Ele inspirou movimentos posteriores?

Viera: A poesia concreta, por exemplo. Em seu manifesto, esta cita apenas dois poetas nacionais anteriores: João Cabral de Melo Neto e Oswald de Andrade.

Por que ele é considerado modernista da geração de 45?

Viera: Ele próprio se colocava na geração de 45. Diferente das de 20 e 30, Cabral dizia que o momento não era de ruptura, mas de se voltar para o que já foi consolidado na literatura e aprofundar isso. Das gerações anteriores, ele se aproximava mais de Carlos Drummond de Andrade, a quem dedicou um livro. Mas Drummond ainda tinha características líricas e, Cabral, não. Já em relação aos seus companheiros da geração de 40, esses eram mais formais e conservadores no sentido da forma. Tanto que uma característica foi o resgate dos sonetos, do classicismo. Cabral, nesse sentido, era diferente.

Quais as características de sua obra “Morte e vida severina”?

Viera: É uma poesia popular, em sílabas, inspirada em cordel. Foi encomendada para ser encenada. Fala sobre miséria e desigualdade social, mas também de esperança. No final, com a criança nascendo, aborda a fé no ser humano e que a realidade pode ser transformada. Esse otimismo, muitas vezes, é deixado de lado quando se analisa a obra de Cabral.

Como o professor pode trabalhar a obra de João Cabral em sala de aula?

Viera: Sugiro pegar o Rio Capibaribe e pensar, com os alunos, as referências a ele na obra do autor. Como o poeta seleciona esse objeto e dá um novo sentido a ele, transformando-o em linguagem. Para as escolas de Recife (PE), vale levar os estudantes para visitarem o rio pessoalmente. Outra opção são as comunidades e outros ambientes de pobreza que aparecem em sua obra. Muitas vezes, temas não tão distantes da realidade do próprio aluno. Como a poesia pensa essa realidade? É uma forma diferente da sociologia e da antropologia, por exemplo, que focam em como o objeto se apresenta. Já a poesia aborda como o objeto pode ser. Está no campo do lúdico, da imaginação e da criação.

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