Conteúdos

– Barroco e suas características
– Padre Antônio Vieira e os Sermões
– Análise dos Sermões de Quarta-feira de cinzas

Objetivos

– Conhecer a biografia do autor
– Refletir sobre os Sermões de Quarta-feira de Cinzas

Previsão para aplicação:
4 aulas (50 min/aula)

1ª Etapa: Barroco e Padre Antônio Vieira

Para iniciar a aula, o(a) professor(a) poderá abordar com os estudantes sobre o movimento literário da época, o Barroco. Recomendamos o vídeo “Barroco no Brasil: contexto e características | Quer que desenhe?”. Acesso em: 31 de outubro de 2019.

Fonte da imagem. Acesso em: 30 de outubro de 2019.

Iniciar falando das particularidades do Barroco nas Artes e na Literatura, apontando suas semelhanças com as características da escrita de Padre Antônio  Vieira:

– Predomínio de temas religiosos;
– Riqueza nos detalhes e formas;
– Expressões dramáticas das personagens retratadas;
– Preferência pelas curvas e contornos em detrimento das figuras geométricas;
– Importância da iluminação e o jogo de luzes e sombras;
– Uso de contrastes, a fim de evidenciar a proximidade do divino com o humano.

Fonte: texto “Arte Barroca”, Site Toda Matéria. Acesso em: 31 de outubro de 2019.

Fonte da imagem. Acesso em: 31 de outubro de 2019.

Padre Antônio  Vieira, nascido em 1608 em Portugal, chegou à Colônia muito jovem com seus pais. Estudou no Colégio de Jesuítas em Salvador e se tornou um dos melhores oradores da época. Foi professor de retórica no Seminário de Olinda e buscava a catequese dos índios.

Famoso por seus sermões escreveu mais de 200 e possui em seu estilo a retórica e o encadeamento de ideias. Os sermões podem ser divididos em três partes:

Exórdio: a apresentação, introdução do assunto;
Desenvolvimento ou argumento: defesa de uma ideia com base na argumentação;
Peroração: parte final, conclusão.

Entre seus sermões, alguns dos mais famosos são: Sermão do Bom Ladrão, Sermão de Santo Antônio  aos Peixes, Sermão da Sexagésima, Sermão da Quinta Dominga da Quaresma, Os Sermões de quarta-feira de cinzas, entre outros.

Disponível no conteúdo “Padre Antônio Vieira”, do site Só Literatura. Acesso em: 31 de outubro de 2019.

2ª Etapa: Sermão de Quarta-feira de Cinza em Roma, ano de 1672

O sermão a seguir foi pregado em Roma, na Igreja de Santo Antônio dos Portugueses, em 1672 e tem como referência o livro de Gênesis, versículo 3:19, da Bíblia: “És pó e do pó retornarás”.

No exórdio, Vieira expõe:

Duas coisas prega hoje a Igreja a todos os mortais, ambas grandes, ambas tristes, ambas temerosas, ambas certas. Mas uma de tal maneira certa e evidente, que não é necessário entendimento para crer; outra de tal maneira certa e dificultosa, que nenhum entendimento basta para a alcançar. Uma é presente, outra futura, mas a futura vêem-na os olhos, a presente não a alcança o entendimento. E que duas coisas enigmáticas são estas? Pulvis es, tu in pulverem reverteris: Sois pó, e em pó vos haveis de converter. Sois pó, é a presente; em pó vos haveis de converter, é a futura. O pó futuro, o pó em que nos havemos de converter, vêem-no os olhos; o pó presente, o pó que somos, nem os olhos o vêem, nem o entendimento o alcança. Que me diga a Igreja que hei de ser pó: Jn pulverem reverteris, não é necessário fé nem entendimento para o crer. Naquelas sepulturas, ou abertas ou cerradas, o estão vendo os olhos. Que dizem aquelas letras? Que cobrem aquelas pedras? As letras dizem pó, as pedras cobrem pó, e tudo o que ali há é o nada que havemos de ser: tudo pó. Vamos, para maior exemplo e maior horror, a esses sepulcros recentes do Vaticano. Se perguntardes de quem são pó aquelas cinzas, responder-vos-ão os epitáfios, que só as distinguem: Aquele pó foi Urbano, aquele pó foi Inocêncio, aquele pó foi Alexandre, e este que ainda não está de todo desfeito, foi Clemente. (VIEIRA,1672, p.55)

Para Vieira, a vida e a morte são análogos Pulvis es, tu in pulverem reverteris, e sendo pó os homens são todos iguais, não importa seus bens em vida, pois todos retornarão ao estado de pó. O pó levantado um dia há de ser pó caído. Vieira propõe que em vida deixemos nossa vaidade de lado para que tenhamos uma vida mais humilde, e, portanto, uma vida mais próxima de Deus.

No Desenvolvimento do Sermão, Vieira argumenta que os homens devem ter um momento de reflexão sobre a verdadeira essência do homem: pó.

Aos vivos, que direi eu? Diga que se lembre o pó levantado que há de ser pó caído. Levanta-se o pó com a vento da vida, e muito mais como vento da fortuna; mas lembre-se o pó que o vento da fortuna não pode durar mais que o vento da vida, e que pode durar muito menos, porque é mais inconstante. O vento da vida por mais que cresça, nunca pode chegar a ser bonança; o vento da fortuna, se cresce, pode chegar a ‘ser tempestade, e tão grande tempestade que se afogue nela o mesmo vento da vida. Pó levantado, lembra-te outra vez que hás de ser pó caído, e que tudo há de cair e ser pó contigo. Estátua de Nabuco: ouro, prata, bronze, ferro, lustre, riqueza, fama, poder, lembra-te que tudo há de cair de um golpe, e que então se verá o que agora não queremos ver: que tudo é pó, e pó de terra. Eu não me admiro, senhores, que aquela estátua em um momento se convertesse toda em pó: era imagem de homem; isso bastava. O que me admira e admirou sempre é que se convertesse, como diz o texto, em pó de terra: In favilíam aestivae areae (Dan. 2,35). A cabeça da estátua não era de ouro? Pois porque se não converte o ouro em pó de ouro? O peito e os braços não eram de prata? Porque se não converte a prata em pó de prata? O ventre não era de bronze, e ademais de ferro? Porque se não converte o bronze em pó de bronze e o ferro em pó de ferro? Mas o ouro, a prata, a bronze, o ferro, tudo em pó de terra? Sim. Tudo em pó de terra. Cuida a ilustre desvanecida que é de ouro, e todo esse resplendor, em caindo, há de ser pó, e pó de terra. Cuida o rico inchado que é de prata, e toda essa riqueza em caindo há de ser pó, e pó de terra. Cuida o robusto que é de bronze, cuida o valente que é de ferro, um confiado, outro arrogante, e toda essa fortaleza, e toda essa valentia em caindo há de ser pó, e pó de terra: In favilíam aestivae areae. (VIEIRA, 1672, p.63)

Para Antônio  Vieira não adianta um cidadão carregado de ouro e vaidade se no final da vida retornará ao seu estado original e não levará nada de material. As condições para uma boa eternidade levará em consideração todas as suas ações em vida, ou seja, uma vida de humildades é bem vista aos olhos de Deus.

Aos mortos digo: lembre-se o pó caído que há de ser pó levantado. Ninguém morre para estar sempre morto; por isso a morte nas Escrituras se chama sana. Os vivos caem em terra com o sono da morte: os mortos jazem na sepultura dormindo, sem movimento nem sentido, aquele profundo e dilatado letargo; mas quando o pregão da trombeta final os chamar o juízo, todos hão de acordar e levantar-se outra vez. Então dirá cada um com Davi: Ego dormivi, et soporatus sum, et esxurrexi. Lembre-se pois o pó caído que há de ser pó levantado. Este segundo memento é muito mais terrível que o primeiro. Aos vivos disse: Memento homo quia pulvis es, et in pulverem reverteris; aos mortos digo com as palavras trocadas, mas com sentido igualmente verdadeiro: Memento pulvis quia homo es, et in hominem reverteris: lembra-te pó que és homem, e que em homem te hás de tornar. Os que me ouviram já sabem que cada um é o que foi e o que há de ser. Tu que jazes nesta sepultura, sabe-o agora. Eu vivo, tu estás morto; eu falo, tu estás mudo; mas assim como eu sendo homem, porque fui pó, e hei de tornar a ser pó, sou pó, assim tu, sendo pó, porque foste homem, e hás de tornar a ser homem, és homem. (VIEIRA, 1672, p.68)

Portanto, no Sermão de quarta-feira de cinza, pregado em 1672, Padre Antônio  Vieira propõe aos homens que não temam em perder a vida, pois esta é uma condição de ser homem, mas temam uma eternidade que não seja prazerosa, ou seja, os homens são responsáveis por suas escolhas e são elas que definem sua natureza.

3ª Etapa: Sermão de quarta-feira de cinzas, ano 1673

Para iniciar a segunda análise, recomendamos ambientar os estudantes no Sermão recitado, com o vídeo “Padre António Vieira “Sermão de Quarta-feira de Cinza” dito por Luis Miguel Cintra #6 (2011)”. Acesso em: 02 de outubro de 2019.

O segundo Sermão foi pregado um ano depois e tem o mesmo tema da morte, porém, de uma perspectiva de aceitação, já que todos morrerão, é melhor aceitar a morte e não se apegar a vida, pois isso se configuraria vanitas (vaidade), o que prejudicaria a eternidade.

Já que hei de ser pó por força, quero ser pó por vontade. Não é melhor que faça desde já a razão, o que depois há de fazer a natureza? Se a natureza me há de resolver em pó, eu quero-me resolver a ser pó, e faça a razão por remédio, o que há de fazer a natureza sem remédio. Não sei se entendestes toda a metáfora. Quer dizer mais claramente que o remédio único contra a morte, é acabar a vida antes de morrer. Este é o meu pensamento, e envergonho-me, sendo pensamento tão cristão, que o dissesse primeiro um gentio. (VIEIRA,1673, p.385)

Senhores meus, o dia é de desenganos. Morrer em o Senhor, ou não morrer em o Senhor, haver de ser bem-aventurado, ou não haver de ser bem-aventurado, é o ponto único a que se reduz toda esta vida e todo este mundo, todas as obras da natureza, e todas as da graça, tudo o que somos, e tudo o que havemos de ser, porque é salvar, ou não salvar. Este é o negócio de todos os negócios, este é o interesse de todos os interesses, esta é a importância de todas as importâncias, e esta é e deve ser na cúria, e fora dela, a pretensão de todas as pretensões, porque este é o meio de todos os meios, e o fim de todos os fins: morrer em graça, e segurar a bem-aventurança. E se me perguntardes: essa bem-aventurança, e esse seguro, e essa graça, por que a não promete a voz do céu aos vivos que morrem, senão aos mortos que morrem: Mortui qiu moriuntur? A razão verdadeira e natural, e provada com a experiência de todos os que viveram e morreram, é porque aqueles que morrem quando morrem, hão de contrastar com todos os perigos e com todas as dificuldades da morte, que é coisa muito arriscada naquela hora; porém os que morrem antes de morrer, já levam vencidos e superados todos esses perigos e todas essas dificuldades, porque na primeira morte desarmaram e venceram a segunda. (VIEIRA, 1673, p.387)

Para Antônio  Vieira, aceitar o desencarne é aceitar seus defeitos e consertá-los antes de morrer garantiria uma boa eternidade. Refletir sobre seus defeitos no leito de morte não tem valor, mas refletir quando se está saudável é o que justifica a doutrina cristã.

Vencida assim esta primeira dificuldade de ser a morte uma, segue-se a segunda, não menos perigosa, nem menos terrível, que é o ser incerta. Certa a morte, porque todos certa e infalivelmente havemos de morrer; mas nessa mesma certeza, incerta, porque ninguém sabe o quando. Repartimos a vida em idades, em anos, em meses, em dias, em horas, mas todas estas partes são tão duvidosas e tão incertas, que não há idade tão florente, nem saúde tão robusta, nem vida tão bem regrada, que tenha um só momento seguro. (VIEIRA,1673, p.392)

No segundo momento do Sermão, Vieira comenta que por a morte ser incerta, o melhor seria refletir desde já suas atitudes perante a vida. Viver uma vida sem vaidades e luxúrias, ser bom e cristão, garantem que sua eternidade seja divina.

Finalmente, se tanto amo, e tão pegado estou aos dias da vida presente, por isso mesmo os devo dar a Deus, para que ele me não tire os que ainda naturalmente posso viver, segundo aquela regra geral da providência sua, e aquele justo castigo dos que os gastam mal: Viri sanguinum, et dolosi, non dimidiabunt dies suos.  Só resta o mais dificultoso laço de desatar, ou cortar, que são os que vós chamais gostos da vida, os quais, se ela se acaba, também acabam: Post mortem nulla voluptas. Ajude-me Deus a vos desenganar deste ponto, e seja ele, como é, o último. Se nesta vida (vede o que digo) se nesta vida, e neste miserável mundo, cheio, para todos os estados, de tantos pesares, pode haver gosto algum puro e sincero, só os que acabam a vida antes de morrer a gozam. Para todos os outros é a vida e o mundo, vale de lágrimas; só para os que acabaram a vida antes da morte, é paraíso na terra. (VIEIRA, 1673,406)

Para concluir, o Sermão trata da  ideia da morte em vida, isto é, deixar de lado as vaidades humanas e refletir sobre suas atitudes perante ao próximo. Arrepender-se em saúde para que em doença não tenha seu arrependimento invalidado.

4ª Etapa: Sermão de quarta-feira de cinzas para a Capela Real, que não se pregou por enfermidade do autor

No último Sermão analisado, Padre Antônio  Vieira trata da morte como remédio que cura todos os males dos homens e deve ser seu objetivo central na vida, pois dessa forma a morte libertaria o homem e o levaria ao descanso eterno. Em vida, a morte aceita pelo homem evitaria uma pós-vida em desarmonia.

A sentença de morte que a Igreja hoje solenemente não só no-la repete aos ouvidos com a voz, mas no-la escreve na testa com a cinza. Assunto do sermão: o pó que somos é a vida, o pó que havemos de ser é a morte: o maior bem da vida é a morte, o maior mal da morte é a vida.

Esta é a sentença da morte fulminada contra Adão e todos seus descendentes, a qual se tem executado em todos quantos até agora viveram, e se há de executar em nós, sem apelação de inocência, sem respeito de estado, sem exceção de pessoa. A Igreja solenemente hoje, não só no-la repete aos ouvidos com a voz, mas no-la escreve na testa com a cinza, como se dissera a seus filhos uma piedosa mãe: – Filhos, ouvi e lede a sentença de vosso pai, e sabei que sois pó, e vos haveis de converter em pó: –Pulvis es, et in pulverem reverteris (Gên. 3, 19). – Outras vezes, e por vários modos, neste mesmo dia, e sobre estas mesmas palavras, tenho comparado e combinado entre si o pó que somos com o pó que havemos de ser, e, posto que me não arrependo do que então disse, o que hoje determino dizer não é menos qualificada verdade nem menos importante desengano. O pó que somos é o de que se compõem os vivos; o pó que havemos de ser é o em que se resolvem os mortos. E sendo estes dois extremos tão opostos como o ser e não-ser, não é muito que os efeitos e afetos que produzem em nós sejam também muito diversos: por isso amamos a vida e tememos a morte. Mas porque eu, depois de larga experiência, tenho conhecido que estes dois efeitos no nosso entendimento, e estes dois afetos na nossa vontade andam trocados, o meu intento é pô-los hoje em seu lugar. O amor está fora do seu lugar, porque está na vida; o temor também está fora do seu lugar, porque está na morte: o que farei, pois, será destroçar estes lugares, com tal evidência que fiquemos entendendo todos que a morte, que tanto tememos, deve ser amada, e a vida, que tanto amamos, deve ser a temida. E por quê? Em um e outro pó temos a razão. Porque o maior bem do pó que somos é o pó que havemos de ser, e o maior mal do pó que havemos de ser é o pó que somos. Mais claro. O pó que somos é a vida, o pó que havemos de ser é a morte; e o maior bem da vida é a morte, o maior mal da morte é a vida. Isto é o que hei de provar. Deus nos assista com sua graça para o persuadir. (VIEIRA, I )

Para ele, o homem deve estar em constante guerra com seus apetites a fim de se curar dos males existentes somente neste mundo. Segundo análise do professor Gustavo Borges, o exemplo utilizado é Jó – que perdeu tudo o que tinha, incluindo seus filhos, e ainda teve uma forte doença de pele.

No final de todo este processo doloroso, ele se vira para Deus e diz: “Senhor, o que mais quereis de mim?”. Essa resignação, essa humildade é a tradução do que Vieira espera de seu ouvinte na missa: a introjeção da humildade, o combate à vaidade e a cura pela fé. Neste terceiro sermão, não prevalece a ideia de que a morte seria um novo nascimento, mas sim que ela representa o fim dos males experienciados na vida.

Para uma melhor  análise dos textos, acessar a resenha “Sermões da Quarta-feira de Cinza, Padre Antônio Vieira”, do professor Gustavo Borges. Acesso em: 02 de outubro de 2019.

Diz Jó que a vida do homem é uma perpétua guerra: Militia est vita hominis super terram – tanto assim que ao mesmo viver chama ele militar: Cunctis diebus quibus nane milito. – Qual seja a campanha desta guerra, não é Cartago ou Flandres, ou, como agora, Portugal, senão o mundo e a terra toda em qualquer parte: super terram. –Mas, como o mesmo Jó não faça menção de muitos, senão de um só ou de qualquer homem –vita homimnis–com razão podemos duvidar quem são os combatentes entre os quais se faz esta guerra e se dão estas batalhas? Se foram gentes e diversas nações, também ele o dissera, mas só faz menção de um homem, porque dentro em cada um de nós, como de inimigos contra inimigos, se faz esta guerra , se dão estes combates, e vence ou é vencida uma das partes. O homem não é uma só substância, como o anjo, mas composto de duas totalmente opostas, corpo e alma, carne e espírito, e estes são os que entre si se fazem a guerra, como diz S. Paulo: Caro concupiscit adversas spiritum, spiritus autem adversas cornem (Gal. 5, 17): A carne peleja contra o espírito, e o espírito contra a carne. – Por parte da carne combatem os vícios com todas as forças da natureza, por parte do espírito resistem as virtudes com os auxílios da graça; mas como o livre alvedrio subordinado do deleitável, como rebelde e traidor, se passa à parte dos vícios, quantos são os pecados que o homem comete tantas são as feridas mortais que recebe o espírito, e basta cada uma delas para se perder a graça. Por isso com razão exclama Santo Agostinho, como experimentado em outro tempo: Continua pugna, rara victoria: A batalha é contínua, e a vitória rara. (VIEIRA, VII)

Podemos observar no Sermão características do Barroco, como a dualidade: “O homem não é uma só substância, como o anjo, mas composto de duas totalmente opostas, corpo e alma, carne e espírito” e reflete o constante conflito do homem em relação aos prazeres da vida.

O morto, quando o levam à sepultura pelas mesmas ruas por onde passeava arrogante, tão contente vai envolto em uma mortalha velha e rota como se fora vestido de púrpura ou brocado. Chegado à sepultura, tão satisfeito está com sete pés de terra como com os mausoléus de Cária ou as pirâmides do Egito; e se até essa pouca terra que o cobre lhe faltasse, diria se pudesse falar, que a quem não cobre a terra cobre o céu: Caelo tegitur Qui non habet urnam. – Pois, se então tão pouca diferença hás de fazer da riqueza ou pobreza das roupas, por que agora te desvanecem tantos e gastas o que não tens na vaidade das galas? Pois, se então hás de caber em urna cova tão estreita, por que agora te não metes entre quatro paredes, e procuras a largueza da morada tanto maior que a do morador, e invejas a ostentação e magnificência dos palácios? Ainda resta por te dizer o que mais me escandaliza. Se quando estás debaixo da terra todos passam por cima de ti, e tepisam, e te não alteras por te ver debaixo dos pés de todos, agora, que és o mesmo, e não outro, só porque estás com os pés sobre menos terra da que então hás de ocupar, por que te ensoberbeces, por que te iras, por que te inchas e enches de cólera, de raiva, de furor, e a qualquer sombra ou suspeita de menos veneração ou respeito o queres vingar, não menos que com o sangue e a morte? Mas é porque a mesma morte te não amansa e emenda. Ouve, enquanto não perdes o sentido de ouvir, um notável dito de Davi: Quoniam supervenit mansuetudo, et corripiemur. – A palavra corripiemur quer dizer seremos emendados, porque a morte é uma correção geral que emenda em nós todos os vícios. E de que modo? Por meio da mansidão, porque a todos amansa: Quoniam supervenit mansuetudo. – Morreu o leão, morreu o tigre, morreu o basilisco: e onde está a braveza do leão, onde está a fereza do tigre, onde está o veneno do basilisco? Já o leão não é bravo, já o tigre não é fero, já o basilisco não é venenoso, já todos esses brutos e monstros indômitos estão mansos, porque os amansou a morte: Quoniam supervenit mansuetudo. – E se assim emenda, e tanta mudança faz a morte nas feras, por que a não fará nos homens? (VIEIRA, IX)

Portanto, os três Sermões aqui analisados, cada um visto de uma determinada perspectiva de Padre Antônio  Vieira, todos possuem a mesma temática, a arte de saber morrer, livrando o homem de seus pecados e os conduzindo a uma vida justa, boa e cristã.

Exercícios

1. (Unicamp) O trecho abaixo corresponde à parte final do primeiro Sermão de Quarta-Feira de Cinza, pregado em 1672 pelo Padre Antônio Vieira.

“Em que cuidamos, e em que não cuidamos? Homens mortais, homens imortais, se todos os dias podemos morrer, se cada dia nos imos chegando mais à morte, e ela a nós; não se acabe com este dia a memória da morte. Resolução, resolução uma vez, que sem resolução nada se faz. E para que esta resolução dure, e não seja como outras, tomemos cada dia uma hora em que cuidemos bem naquela hora. De vinte e quatro horas que tem o dia, por que se não dará uma hora à triste alma? Esta é a melhor devoção e mais útil penitência, e mais agradável a Deus, que podeis fazer nesta Quaresma. (…) Torno a dizer para que vos fique na memória: Quanto tenho vivido? Como vivi? Quanto posso viver? Como é bem que viva?

a) Levando em conta o trecho acima e o propósito argumentativo do Sermão, explique por que, segundo Vieira, se deve preservar “a memória da morte”.

b) Considere as perguntas presentes no trecho acima e explique sua função para a mensagem final do Sermão.

Resposta:

a) O primeiro Sermão de Quarta-feira de Cinza, desenvolve o tema da vaidade e do desengano da vida, fatores perigosos para quem almeja a salvação da alma. Dessa forma, o grande objetivo desse texto é convencer o receptor da mensagem de que, para que ele consiga a salvação, é preciso sempre ter em mente a extrema importância da hora da sua morte, pois é nesse momento em que ele dará conta das escolhas que fez em vida, que arcará com as consequências da maneira como levou sua existência. Em resumo, é o momento em que assegurará a salvação no Paraíso ou a danação no Inferno. O verdadeiro seguidor dos preceitos divinos deve afastar-se dos valores mundanos, da vaidade, pois são efêmeros e enganosos e causam a perdição da alma.

b) Essas perguntas funcionam como interrogações retóricas, tendo como objetivo provocar a reflexão do receptor desse Sermão e induzir ao comportamento adequado para a salvação da alma. A intenção de todas essas perguntas, portanto, é fazer com que aquele que quiser ser um bom cristão avalie a forma como vive e busque orientar sua existência de maneira a assegurar o Paraíso.

2.(Ufscar) Em Padre Vieira fundem-se a formação jesuítica e a estética barroca, que se materializam em sermões considerados a expressão máxima do Barroco em prosa religiosa em língua portuguesa, e uma das mais importantes expressões ideológicas e literárias da Contrarreforma.

a) Comente os recursos de linguagem que conferem ao texto características do Barroco.

b) Antes de iniciar sua pregação, Vieira fundamenta-se num argumento que, do ponto de vista religioso, mostra-se incontestável. Transcreva esse argumento.

Respostas:

a) No texto de Padre Vieira, são evidenciadas várias características barrocas, tais como o rebuscamento da linguagem, as construções anafóricas (“Os vivos são pó levantado… Os vivos são pó que anda”), o jogo de palavras e de conceitos (distingue-se o pó do pó) e o conflito do teocentrismo com o antropocentrismo.

b) O fundamento incontestável é “pois Deus o disse”.

3. (UFRS) Leia o texto e assinale a alternativa incorreta a seu propósito.

“A morte tem duas portas. Uma porta de vidro, por onde se sai da vida; outra porta de diamante, por onde se entra à eternidade. Entre estas duas portas se acha subitamente um homem no instante da morte, sem poder tornar atrás, nem parar, nem fugir, nem dilatar, senão entrar para onde não sabe, e para sempre. Oh que transe tão apertado! oh que passo tão estreito! oh que momento tão terrível! Aristóteles disse que entre todas as coisas terríveis, a mais terrível é a morte. Disse bem; mas não entendeu o que disse. Não é terrível a morte pela vida que acaba, senão pela eternidade que começa. Não é terrível a porta por onde se sai; a terrível é a porta por onde se entra. Se olhais para cima: uma escada que chega ao céu; se olhais para baixo: um precipício que vai parar no inferno. E isto incerto”.

a) Passagem famosa do Sermão da Quarta Feira de Cinza, celebrado em Roma, em 1670. O tema canônico desse sermão encontra-se no livro bíblico do Gênese, 3, 13, nas palavras de Deus a Adão: “Memento, homo, quia pulvis es et in pulverem reverteris” (“Lembra-te, homem, de que és pó e ao pó voltarás”), que constitui seu conceito predicável.
b) As metáforas das portas estabelecem uma relação antitética: a imagem do vidro desperta a noção de efemeridade das coisas da vida, que regressa ao pó de onde veio, uma vez que o vidro é feito de areia; a imagem do diamante se associa a noção de perenidade, significando o início da vida eterna.
c) A doutrina expressa por Vieira nessa passagem, por ser fundamentada em Aristóteles, contrariava a visão canônica da igreja católica contra reformista, especialmente por dizer que a existência do inferno era incerta.
d) Nota-se bem a influência da doutrina contra reformista, na visão ameaçadora e terrível que o texto apresenta a propósito da vida eterna. A autoridade da filosofia grega é invocada, embora declarando sua inferioridade perante o pensamento cristão.
e) A imaginação serve de apoio à demonstração de ideias, dispostas racionalmente e valorizadas por um estilo que sabe valer-se das figuras de construção, como a anáfora, de pensamento, como a antítese, e tropos, como a metáfora, para, com eloquência, melhor persuadir. Essas marcas permitem enquadrar o fragmento acima no estilo conceptista Barroco.

Para acessar essas e outras questões: conteúdo “Exercícios sobre obras literárias – Sermão da Quarta Feira de Cinza”. Acesso em: 05 de outubro de 2019.

Alternativa correta: C

Materiais Relacionados

1) Mais sobre o movimento literário “Barroco”. Acesso em: 30 de outubro de 2019.

2) Biografia do Padre Antônio Vieira. Acesso em: 30 de outubro de 2019.

3) Podcast “‘Sermões de Quarta-feira de Cinza’ provoca reflexão sobre morte como cerne da consciência humana”, com o professor Frederico Barbosa. Acesso em: 30 de outubro de 2019.

4) Texto “Padre Antônio  Vieira: O discurso engenhoso em nome da fé e da salvação do homem”, da professora Nadiá Paulo Ferreira. Acesso em: 30 de outubro de 2019.

5) Artigo “Os Sermões De Quarta-feira De Cinza Do Padre Antônio Vieira e a Arte De Morrer Estoico-cristã”, de Marcelo Lachat. Acesso em: 30 de outubro de 2019.

Os sermões analisados poderão ser encontrados em:

1) Sermão de quarta-feira de cinza em Roma, ano de 1672. Acesso em: 30 de outubro de 2019.

2) Sermão de quarta-feira de cinza, ano de 1673. Acesso em: 30 de outubro de 2019.

3) Sermão de quarta-feira de cinzas para a Capela Real, que não se pregou por enfermidade do autor. Acesso em: 31 de outubro de 2019.

Arquivos anexados

  1. Plano de aula – “Sermões de Quarta-feira de Cinzas”, de Padre Antônio Vieira

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