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Marcelo Abud

“Cá entre nós” é um curso em que o homem acusado de cometer violência doméstica pode refletir sobre o modelo de sociedade patriarcal, o papel social dele nesse contexto e o machismo. A iniciativa do Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP), que existe desde 2016, quando foram comemorados os 10 anos da Lei Maria da Penha (nº 11.340/06), é o tema deste podcast.

“A gente vai ganhar as pessoas produzindo ciência e fazendo com que entendam que só o que a gente está querendo é que a mulher tenha efetivamente a possibilidade de ser cidadã”, defende a juíza da Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher do Foro Regional do Butantã, Rafaela Caldeira Gonçalves. Responsável pela iniciativa, ela é uma das entrevistadas ouvidas pelo Instituto Claro.

Em 16 encontros, que acontecem quinzenalmente, os homens que participam do curso assistem a filmes que reproduzem comportamentos e discutem a imagem de masculinidade que foi passada a eles na infância, na escola, por meio da religião etc.

Segundo o psicólogo Alexandre Shimura, que conduz os debates com as turmas e também foi entrevistado para este podcast, a proposta é desconstruir estereótipos, tendo a clareza de que as desigualdades das relações de gênero são reproduzidas por toda a sociedade.

“A gente discute esses temas, reflete e mostra que isto é uma construção social. Isso vem da educação, vem das expectativas sociais”, explica Shimura.

Cantora Paula Lima é embaixadora da campanha #SomosTodasMariadaPenha (crédito: Comunicação Social TJSP)

 

No áudio, você conhece os detalhes do curso “Cá entre nós”, ouve o relato de um participante sobre o que mudou na visão dele a respeito do machismo e acompanha ainda o depoimento emocionado da youtuber Dora Figueiredo, que recentemente teve o vídeo vídeo “Eu vivi um relacionamento abusivo” “viralizado”, em que conta como se deu conta de que havia vivido um relacionamento baseado em violência psicológica.

“Nunca uma violência física está separada de uma violência psicológica, ou vem separada de uma violência patrimonial. Na verdade, o que a gente nota também é que, quando isso aparece, ou quando a vítima se dá conta, ela já sofreu por sete, oito anos”, diz a juíza Rafaela Gonçalves, para enfatizar a importância de se apoiar mulheres que passaram por este tipo de relação.

Neste sentido, a iniciativa também promove reunião de mulheres que sofrem agressão. A juíza considera este um diferencial ao comparar o “Cá entre nós” a outros projetos que também têm o objetivo de combater a violência contra a mulher, espalhados por tribunais de Justiça de todo o país.

Para nossa reportagem, Rafaela Gonçalves ainda antecipou uma terceira etapa: a partir deste mês de setembro, o curso vai ser oferecido também a grupos de filhos dos casais envolvidos em situação de violência doméstica. No início, serão convidados meninos e meninas, a partir de 12 anos. “A gente precisa fazer a nossa sociedade entender que não se refere só a essa mulher ou a essa menina desse relacionamento, mas a esses filhos que vivenciam essa dinâmica, de uma maneira ou de outra, e que vão assimilar essa forma de se relacionar e até de ‘expressar o afeto’ que não é saudável”, conclui.

Juíza Rafaela Gonçalves durante entrevista ao portal do Instituto Claro (crédito: Daniel Grecco)

 

Créditos:
As músicas utilizadas no podcast, por ordem de entrada, são: “Homem não chora” (Frejat) e “Super Homem, a canção” (Gilberto Gil), com Caetano Veloso. A trilha de fundo é composta e tocada por Reynaldo Bessa.

Atualizada em 13/9/2019 às 11h40.

Crédito da imagem principal: Milkos – iStock

Transcrição do áudio:

Vinheta “Instituto Claro”

Trilha sonora de fundo de Reynaldo Bessa

Marcelo Abud:
Um espaço onde o homem envolvido em situação de violência doméstica pode refletir sobre questões como o modelo de sociedade patriarcal e o machismo. Assim é o curso “Cá entre nós”. Desenvolvido pelo Tribunal de Justiça de São Paulo, o objetivo é possibilitar meios de solução de conflitos e evitar que nova violência seja cometida.

Neste podcast, você vai ouvir o depoimento de um participante do curso, além de dois representantes da Vara de Violência Doméstica e Familiar Contra a Mulher, do Foro Regional do Butantã, o psicólogo Alexandre Shimura e a juíza Rafaela Caldeira Gonçalves.

Rafaela Gonçalves:
Essa ideia de revisão das masculinidades e feminilidades é necessária. Todo mundo que trabalha com violência de gênero num determinado ponto fala assim “não, só o processo, só a ‘Penha’ não resolve. A gente tem que cuidar dessas pessoas de alguma outra forma pra que elas se revejam”.

Marcelo Abud:
Nos grupos, há homens que frequentam o curso porque manifestam o desejo de participar; os que são obrigados como condição, por exemplo, para não serem presos; e ainda aqueles que, ao final do processo, na sentença, participam dos encontros como condição para o regime aberto.

Rafaela Gonçalves:
Aqueles que eu coloco como obrigação de participar desse grupo, num primeiro momento eles são super resistentes, ficam chateados, falam “essa juíza me obrigou a participar desse grupo, tô aqui hashtag chateado mesmo”. Mas ao longo desses 16 encontros eles em contato, inclusive, com esses outros que já chegaram antes – porque têm os que tão acabando e os que tão chegando –, eles vão mudando de opinião; eles vão entendendo que, na verdade, essa medida não é em desfavor deles, é em favor deles, inclusive para que eles não sejam presos, pra que eles não voltem a praticar esse mesmo tipo de crime, pra que eles se revejam em termos de masculinidade. E o índice de reincidência é em torno de 2%. Então, eu posso reduzir a pena dele, quando eu aplico a obrigação de participação no grupo como medida protetiva. Se esse agressor participou dos 16 encontros, o setor – por sua vez – faz um relatório de participação. Eu, em eventual caso de condenação, considero isso como uma atenuante genérica, porque o código penal me prevê essa possibilidade.

Música: “Maria Chiquinha” (Geysa Bôscoli / Guilherme Figueiredo), revisada com discurso de Junior, em show da turnê 2019
“Que c’ocê vai fazer com o resto? / Junior: O resto? (plateia: ‘Pode deixar que eu aproveito’) / Para com isso. Isso não é mais aceitável. Não são mais os anos 90. Não vou fazer nada com o resto. Deixa em paz a Maria Chiquinha (plateia: aí sim, viu!). Muito melhor?!”

Marcelo Abud:
Esse é um trecho do show que a dupla Sandy e Junior fez em julho desse ano, em Fortaleza. Ao relembrarem o sucesso “Maria Chiquinha”, que cantavam quando eram crianças, a plateia seguiu entoando a estrofe final, mas foi interrompida por Junior. Ele aproveitou o momento para revisar a letra machista e fazer o público refletir. É isto o que o “Cá entre nós” pretende gerar em participantes do curso, como é o caso de Renato.

Renato:
O que eu percebi muito, que eu fazia talvez também, é quanto ao controle disso. E a mulher não quer mais isso. Ela quer mais essa liberdade, que ela possa conduzir a vida dela, que ela possa fazer as coisas que ela quer, independente do que você acha ou não.

Rafaela Gonçalves:
A quantidade de participantes é em torno de 15, no máximo, até pra que todos possam participar, debater… São 16 encontros, a cada 15 dias, e o que acontece é o debate sobre diferentes aspectos relacionados a questões ligadas à violência e a gênero.

Marcelo Abud:
O psicólogo Alexandre Shimura é um dos responsáveis pelo conteúdo e também pela condução do curso.

Alexandre Shimura:
Quando os homens chegam no grupo, muitos deles trazem a ideia de ser homem, ser mulher, como uma coisa natural, ou seja, existem certos comportamentos, atitudes e papéis que os homens devem exercer, necessariamente; e existem outros papéis, atitudes e comportamentos que as mulheres devem exercer, também necessariamente. O que a gente faz nesses encontros: a gente discute esses temas, discute, reflete e mostra que isso é uma construção social. Isso vem da educação, isso vem das expectativas sociais. Essa forma de agir, essa forma de se relacionar, que quando se aprende um jeito de ser homem e se entende um jeito de ser mulher, a gente também se relaciona baseado nestes estereótipos.

Música: “Homem não chora” (Frejat)
“Homem não chora nem por dor nem por amor / E antes que eu me esqueça / Nunca me passou pela cabeça lhe pedir perdão”

Rafaela Gonçalves:
Então nessa desconstrução de estereótipos do masculino, de se rever, de rever determinadas posturas, inclusive que são consideradas socialmente aceitas: da agressividade ligada ao masculino, do frágil ligado ao feminino. Ou do que que o homem não pode, né? “não pode chorar, não pode demonstrar fraqueza”. São trabalhados alguns textos também.

Alexandre Shimura:
E, dessas reflexões, a gente busca mostrar que isto é uma construção e que existem outras possibilidades de relacionamento, diferentes do que eles estão acostumados, e melhores: mais saudáveis, mais igualitários e menos violentos.

Renato:
O Alexandre consegue deixar você bem descontraído pra poder falar à vontade. E como você está no meio de pessoas com o mesmo foco, acaba ficando mais fácil de discutir os processos, discutir as coisas que estão acontecendo. E depois discutimos em grupo aquilo que se foi dado, as respostas que foram dadas, o que você acha daquela resposta, pra que você possa tomar a sua consciência.

Rafaela Gonçalves:
Às vezes vem um que já participou pra falar dessa experiência anterior, filmes, qual foi a imagem de masculinidade que foi passada a eles na infância, na escola, por meio da religião, na casa. Então tudo isso é revisto. Várias coisas, do porquê que eles estão aqui.

Música: “Super Homem, a canção” (Gilberto Gil), com Caetano Veloso
“Um dia vivi a ilusão de que ser homem bastaria / que o mundo masculino tudo me daria / do que eu quisesse ter”

Renato:
No meu caso, por exemplo, eu queria entender “por que que a pessoa que eu gostava tanto foi pra uma delegacia me denunciar?”. E eu não entendia como uma pessoa que gosta da outra pessoa pode chegar a esse ponto, que que eu fiz pra isso?. Então foi pra isso que eu fui lá pra entender por que que eu teria chegado a esse ponto e estou conseguindo chegar, estou conseguindo entender.

Rafaela Gonçalves:
O que as mulheres mais conseguem notar e identificar que elas estão sendo vítimas é a violência sexual, é a violência física. Isso elas conseguem dizer até de uma maneira muito clara que elas estão sendo vítimas de violência. Mas quando a gente tá falando, por exemplo, de uma violência moral, de uma violência psicológica e de uma violência patrimonial – então muitas vezes o marido tira os cartões de crédito, deixa ela sem ter como… , principalmente aquela mulher que sempre dependeu economicamente do marido, que o marido num determinado momento falou pra ela assim que é melhor ela não trabalhar pra ela poder cuidar dos filhos –, ela não consegue identificar que isso é uma maneira de violência. Essa mulher, por exemplo, ela não vai conseguir muitas vezes chegar, num primeiro, momento, dizer pra gente, contar para o juiz ou na delegacia ou na defensoria pública, por exemplo, onde ela for, e apontar isso como uma espécie de violência e é! E a Lei Maria da Penha identifica isso como violência.

Marcelo Abud:
Em julho deste ano de 2019, a youtuber Dora Figueiredo alcançou milhões de visualizações de um vídeo em que fala sobre um relacionamento abusivo que viveu. O depoimento gerou a hashtag Meu Ex Abusivo.

Vídeo do Canal Dora Figueiredo, no YouTube: “Eu vivi um relacionamento abusivo”
“Você acha que um relacionamento abusivo já começa com tapa na cara, não ‘bebê’, (chorando) relacionamento abusivo começa lindo, é uma coisa linda, a pessoa te idolatra, fala que você é uma pessoa forte, que você é uma mulher empoderada, que você é uma mulher incrível. E, aos poucos, isso vai se perdendo no meio de algumas ‘dicas’ de ‘como você poderia se comportar melhor’. Eu lembro muito bem do primeiro, do primeiro sinal (riso nervoso) que foi quando ele fez ‘shi! aqui não é lugar pra você falar alto!’ Foi de um ‘shi! Você não pode falar alto nesse lugar’ pra ‘você não pode falar na internet sobre feminismo’. Então, foi do controlar o volume da minha fala em certos ambientes até controlar o que eu falava na internet. É meio difícil pra mim, porque eu passei por uma situação da qual eu não imaginaria que eu seria capaz de passar, da qual, até um tempo atrás, eu achava que eu não tinha passado: que é um relacionamento abusivo.”

Rafaela Gonçalves:
Então os estudos… existe a síndrome da mulher que apanha, que ela se acha a responsável por apanhar, por sofrer aqueles xingamentos, ela se acha merecedora e se acha dependente, ela acha que a única pessoa que vai gostar dela realmente é aquele indivíduo, que externa o afeto daquela maneira, quer dizer, isso não é afeto, na verdade. E, por isso que a gente tem que ter esse olhar de tolerância mesmo, e jamais ter essa fala “mas por que que a senhora ficou tanto tempo com esse homem?”, “Por que voltou, e aí a senhora ainda foi ter outro filho?”, esse tipo de fala não cabe mesmo de uma pessoa que já tá num ciclo… que a gente tem que na verdade auxiliá-la a se estruturar psicologicamente pra conseguir romper um relacionamento que claramente não está mais numa linha de sadio.

Trilha de Reynaldo Bessa no fundo

Marcelo Abud:
O curso “Cá entre nós” é um programa do Tribunal de Justiça de São Paulo. Pelo país, há inúmeras iniciativas que tem esse mesmo objetivo: o de descontruir preconceitos de um modelo de sociedade patriarcal.

Com apoio de produção de Daniel Grecco, Marcelo Abud para o Instituto Claro.

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